17 de julho de 2012

A lida de Daniel Guerra

Daniel Guerra. Foto: arquivo pessoal
O diretor do grupo Alvenaria fala sobre sua prática de trabalho, concepções artísticas e do teatro baiano atual. Ele diz que não há crise, mas sim mudanças no cenário cênico.

[A reprodução deste texto por outros veículos é permitida, desde que haja a inclusão do crédito de fonte: Hilda Lopes Pontes/ABAN]

Por Hilda Lopes Pontes 

QUADROS estáticos formados por imagens fragmentadas. É assim que o diretor teatral Daniel Guerra recorda da infância. A adolescência foi um parto difícil, mas foi nela que o teatro entrou em sua vida. Estudante do Colégio Marista, assistiu a uma peça do Caricaturetas, grupo da escola. Encantou-se com o espetáculo e mergulhou no universo teatral, tendo como mentora Cristina Rodrigues. “Cristina, a professora-diretora do grupo, foi a primeira pessoa que acreditou em mim enquanto profissional-artista, profissional-criador, e quem me apresentou quase tudo do pensamento, da teoria e da prática do teatro”, comenta. Escolheu a graduação em Direção Teatral, mesmo não sabendo ao certo a razão desta opção até hoje.

CONSIDERA errôneo o discurso de que há uma crise no teatro baiano atual. Acredita que nos últimos anos existiram muitas mudanças no cenário cênico da Bahia. Novas vertentes artísticas começaram a brotar, a surgir e pulsar num subterrâneo. Encenações em locais alternativos, ou seja, não só no espaço físico de teatral. Para ele é possível viver de teatro hoje, com os editais. “No auge da minha juventude e pouco tempo de estudo, vejo que encarar a máquina pública como uma máquina que é sua também é fundamental para qualquer artista.”, afirma.

DIRIGE o grupo Alvenaria, mas acredita que cada um possui uma máscara que caracteriza sua função, e, em tese, a sua é de diretor, uma máscara considerada por ele muito divertida de usar. Na prática, exerce seu trabalho de maneira não convencional e até participa ativamente dos espetáculos montados pelo Alvenaria. “Vi que na hora do ‘vamo-ver’ a coisa acontece muito independentemente da máscara-diretor”, comenta. Os atores para ele não são uma massa a seu dispor e sim indivíduos com desejos e particularidades.

No espetáculo "Fogueira". Foto: divulgação

H - De que maneira caracteriza o teatro baiano atual? 
D - Muita coisa acontecendo. Pulsações subterrâneas. Só os surdos não ouvem, e aí ficam repetindo aquela ladainha da "crise do teatro". Mas eu preferiria dizer: a crise de “um” teatro. Logo quando entrei na Escola de Teatro, presenciei um momento muito peculiar da sociedade artística soteropolitana. E só agora eu entendo o porquê de tudo aquilo, e do decorrente “discurso da crise” que isso gerou. É que a coisa estava mudando. Desde que eu me vi na UFBA, ou seja, me constituindo enquanto pensador da minha arte, presenciei algumas coisas interessantes: vi o PT tomando posse, o Teatro XVIII ameaçando fechamento, o Teatro Jorge Amado em crise financeira, a Escola de Teatro tendo seu corpo de professores finalmente renovado e gerando muitas brigas internas, muitas brigas de poder, o advento Módulo enquanto revolução de pensamento dentro da Universidade de Teatro, muitas mortes por velhice e outras coisas. Por tudo isso e por mais um bocado de coisas é que eu me sinto no meio de um processo, junto com tantos outros. O teatro está acontecendo de maneira diferente, em lugares diferentes. Casas, porões, ruas, salas de ensaio e por aí vai. Os velhos polos, por enquanto se mantêm de fora desse circuito ativo; quero dizer, esse teatro não está acontecendo lá. Descentralização progressiva, paulatina, homeopática. Aí, é claro, tem a reação. Tem o pessoal que persiste na nostalgia da "crise". Quando alguma coisa está se transformando, pode aparecer como mera deformação, para os espíritos moribundos. Mas, aqui entre nós: para os vivos, tudo é uma festa. Me orgulho de existir na minha época, na minha cidade e entre as pessoas dessa época. Claro, entre as pessoas vivas, diga-se de passagem.

H - Sua família apoiou sua carreira como artista?
 D - Sim. Lembro que onde minha criatividade apareceu primeiro foi no desenho. Meus pais me davam muitos lápis e gizes de cera e papéis. Depois eles me botaram num curso de pintura. Depois me incentivaram no violão, na música. Depois, naturalmente, não podiam fazer mais nada para impedir esse desenvolvimento, e então me apoiam até hoje, mesmo sabendo dos abismos em que me envolvo, e que por vezes se interpõe entre nós (muitas vezes). Mas na verdade, quem me sussurra coisas fundamentais até hoje é meu avô. Ele era comunista de bar e anticarlista, mas patriarca dos mais duros também. Uma mente filosófica, política. Me ensinou o rigor e a radicalidade que se deve ter consigo mesmo, em tudo que se faça.

H - Qual era a formação dos seus pais? 
D - Meu pai é engenheiro mecânico, com um grau de espiritualidade católica muito interessante. Minha mãe se formou em arquitetura, chegou a exercer a profissão por algum tempo, mas depois largou. Porque ela tinha um fantasma que a perseguia, e esse fantasma era a dança. Ela sempre foi dançarina de jazz. Me levava para os ensaios desde pequeno. Hoje ela conseguiu formas de ser dançarina em tempo integral e manter a família junto com meu pai.

Ensaio do grupo teatral Alvenaria. Foto: arquivo do grupo
H - Existe alguma história curiosa de algum processo que fez parte? 
D - Um dia eu participei como co-diretor de uma montagem chamada “A Casa de Bernarda Alba”. O processo foi um inferno na terra. Tudo errado. Esteticamente, eticamente (aliás, existe cisão?). Mas agora vem a parte curiosa: esse espetáculo levou o prêmio de melhor espetáculo na premiação mais badalada da nossa terrinha. Pensei em como aquilo pôde ter acontecido. Para mim, o que aconteceu foi que a estetização ficou por cima da ética. Na verdade essa cisão, que nunca deveria ter existido, existiu e me mostrou o quanto o apego estético pode ser perigoso. Perfumaria para esconder a podridão. Esse foi, graças a Deus, meu último golpe de descrença. Essa historinha foi fundamental para várias definições posteriores. Era o estouro que faltava.

H - Com os atuais apoios e editais, é possível viver de teatro?
D- Acredito que sim. Acontece que a gente tem que conhecer nosso sistema. Quem fica reclamando das políticas públicas parece não querer assumir que a engrenagem tem que ser estudada mais a fundo, para ser mexida de dentro. Estou entendendo aos poucos que isso exige muito trabalho, paciência e coragem. Nos meus estudos ainda nascentes, que estou fazendo com outros grupos num movimento chamado Redemoinho, o discurso (pelo menos o discurso) do governo parece ser o de um diálogo cada vez maior entre o poder público e a sociedade civil. Vejo que encarar a máquina pública como uma máquina que é sua também é fundamental para qualquer artista. Penso que nutrir essa esperança é melhor do que expor minha criação para empresários que nada têm a ver com nada do que falo.

H - Existe algum teórico ou diretor em quem você se inspirou?
D - Quem mais me inspirou na minha vida foi Nietzsche. Foi amor à primeira vista. Hoje não gosto mais de ler sobre teatro. Mas me apaixonei por muito tempo por Artaud e Grotowski, e posteriormente tive uma queda pelo que vi de Kantor. Mas hoje em dia tomo o cuidado devido para que todos eles fiquem no lugar que pertencem: no passado, nos livros, na gaveta. Toda essa parafernália icônica só é potente enquanto isca para o desejo individual. Tão logo sejam atravessados, todos os ícones devem, um por um, ser arremessados ao esquecimento e devidamente enterrados, para virar adubo, para que disso nasça algo realmente potente; potente porque legítimo.
Registro do espetáculo "Bakxai", com o qual o grupo estreou

H - Como surgiu o grupo de teatro o qual dirige, o Alvenaria? 
D - Eu não dirijo o Alvenaria. No Alvenaria a direção é um dispositivo móvel, uma instância de encontro, um território de visão, muitas vezes um mirante, que pode ser (e é) acessado por todos. Essa “direção”, esse dispositivo, muitas vezes toma o sentido de um desejo coletivo, que é o resultado de muitas batalhas travadas entre desejo individuais. Se eu me coloco nesse lugar de visão muitas vezes, é porque eu gosto dele. É a minha viagem, um fetiche, talvez. Ali eu posso jogar com a máscara “diretor”. Mas sobre a fundação: eu fundei o Alvenaria junto com mais dois companheiros da época: Lucas Modesto e Marcelle Pamponet. Depois juntaram-se mais umas quinze pessoas que ajudaram a erguer o conceito e a prática desse grupo que hoje tem o número de seis.

H - Qual a trajetória do grupo e como ele está atualmente? 
D- O grupo nasceu da loucura que é estar prestes a se formar naquela escola. Percebendo o tanto de energia que essa crise gera no ar, tive a ideia do grupo como um lugar onde essas energias loucas que não encontram lugar no “mercado” da cidade vão se encontrar para fazer algo juntos, quiçá um novo “mercado”, ou pelo menos uma “vendinha” própria. Daí que a coisa começou a se desenvolver com suas próprias pernas, como se tivéssemos criado um monstro. No início tudo tinha a rigidez da ansiedade. Muita máscara-diretor junta, muita máscara-ator. E o desejo de fazer algo atravessando tudo. Surgiu Bakxai, primeira experiência da gente. Muitas questões. Muitas explosões internas. Cisões. Creio que o grupo como é hoje só surgiu depois do acontecimento Bakxai. Porque hoje o grupo é um lugar onde se discute, acima de tudo. Onde se faz arte sim, porque é pra onde nosso desejo aponta, mas onde, acima de tudo se discute sobre cada um de nós, onde se faz política e onde a gente pode se ver melhor, mais de perto.

"Butô de bebado não tem dono": Liliana Matos, Raiça Binfim, Camilla Sarno e Ci Moura

H - Há algum método ou técnica específicos na forma com que lida com os atores do Alvenaria?
D - Eu venho perseverando na aprendizagem da arte de me expor com muito afinco. É difícil. A gente tem fraquezas e teimosias, e quando elas são reveladas viram potências. Mas a gente não costuma mostrar, porque é muito difícil. Difícil porque a história da criação desse personagem, o “diretor”, é uma história da progressiva anulação do corpo. Daí resultou que, quem se identifica, desde a formação, com essa máscara, vai também perdendo o corpo. Vai achando que não tem que se mostrar dentro da sua própria criação. Começa a presumir que está invisivelmente espalhado por cada ação, por cada palavra do atores. Mas isso tudo é uma mentira. Quando descobrimos que o teatro é apenas acontecimento e nada mais, vi que na hora do “vamo-ver” a coisa acontece muito independentemente da máscara-diretor. Na verdade, na hora do acontecimento, aquele diretor-máscara é um apêndice inútil no meio de uma vida em florescimento. E todo organismo rejeita o invasor. Como eu não quero ser rejeitado assim de graça, é com esse apêndice que eu tenho que lidar todo dia. Ando pesquisando muito sobre o resgate da minha corporalidade dentro do grupo, a partir do lugar em que me coloquei desde o início, respeitando o lugar dos outros, é claro. Como diria Márcio Nonato, um colaborador do grupo, talvez eu esteja tateando aos poucos uma “performatividade da direção”. No final, o que cada um tem que fazer é perseverar na lida consigo mesmo.

H – O que diria para aqueles que gostariam de seguir a carreira no teatro? 
D - Um artista sem radicalidade é tão inútil quanto um médico medíocre, mas, por outro lado, um médico radical pode ser tão potente quanto um artista engajado. Tudo se encontra e se assemelha na linha do desejo, e essa linha é sempre abissal. Seja o que quiser, mas seja até o fundo, senão você não presta prra nada. Ou então vai pro paraíso Globo, que dá no mesmo, e fica lá enquadrado na telinha. Infelizmente eu sei que esse é o desejo de muitos.

Cena de "Butô de bebado não tem dono"
H - Como você trabalha a energia ritualística em suas montagens?
D - O que eu posso tentar esboçar como explicação é o seguinte: me parece que o processo é justamente o contrário da pergunta. Parece que a gente deu apenas um primeiro impulso conceitual (e tenso) em Bakxai e depois foi a própria “energia ritualística” que foi se trabalhando através de nós. Porque o rito é justamente a história de algo misterioso que se concretiza em ações através de uma comunidade. Não dá para trabalhar isso fingindo ser ritualístico, imitando ou representado os caracteres alegóricos de um rito. Só dá para fazer um rito que seja original, e isso só se dá quando se tem esse único fator dramatúrgico: o encontro com o mistério. Para nós, por enquanto, esse encontro está se dando por meio da total improvisação em cena. Ela é que nos dá o risco e a abertura necessários para a irrupção de uma realidade mais potente. Nos colocamos nus, despidos daquelas tessituras tradicionalmente dramáticas (tradicional pra mim, vai de Tchecov até Beckett, incluindo Grotowski e suas partituras físicas, e por aí vai, tudo isso é dramaturgia tradicional). É nos buracos do cotidiano, dos lugares-comuns e das convenções que enfiamos nossas cabeças. Lá dentro tem muita coisa ainda sem nome, contrariando o senso comum que diz que “tudo já foi feito”; mais uma mentira reacionária da nossa época.

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